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segunda-feira, fevereiro 06, 2012

A minha Jula, o meu Xico e o alzheimer

A minha avóJúlia faleceu em Agosto do ano passado, mesmo no dia a seguir aos anos da minha mãe. A vóJula estava já muito atacada pelo Alzheimer, e já há uns anos que não era a “minha avó”, era assim como que uma sombra dela, “apenas” uma velhinha simpática perdida no seu mundo, com a voz semelhante à da minha avó mas sem a sua força e a sua alegria, mais pequena, mais magra, muito menos robusta e sempre disponível.

Eu cá continuo a sonhar muito com a voz da minha avó. Da minha avó, essa voz que foi desaparecendo nos últimos dez anos. Assim como a minha avó. Mas isso sempre sonhei: quando eram sonhos bons eram regados com as gargalhadas dela, com as suas conversas e piadas ou simplesmente com o tic-tac do relógio de casa dela. Aquele relógio grande, no cimo das escadas, cujo som embalava à noite e ajudava a dar um ritmo muito próprio aos primeiros instantes do acordar. Era o ritmo de casa da avó, a casa onde eu sempre gostei de estar, onde eu sempre queria estar, o ritmo que era ajudado pelas mãos do avô que lhe dava sempre corda. O tic-tac que parou quando o avô morreu e todos fomos apanhados na dor dessa perda tão repentina, tão inesperada. O tic-tac parou e a casa da avó deixou de ser a mesma casa, com a falta do nosso Xico e desse tic-tac que para mim era como que o coração dos meus avós. Pedi à avó para não deixar morrer esse tic, esse tac. E ela lá foi dando corda ao tic-tac do avô, enquanto me segredava - quando os “adultos” saíam da sala - que ainda não se tinha bem habituado à ideia da morte do avô, e que ainda falava com ele, quando ninguém via. E perguntava-me se eu a achava maluca por isso. Mal sabia ela que eu falava com eles os dois também em silêncio. E pedia (peço) tantas desculpas ao meu avô por ter tido aquele pensamento tão mau quando soube da sua morte. Porque quando o meu avô VôXico morreu, tinha eu uns 15 anos, eu só conseguia pensar “ainda bem que não foi a minha Jula”. Porque eu não sabia bem como ia eu reagir ao desaparecimento da minha Jula. Sem saber nessa altura que ela ia, em poucos anos, começar a começar a desaparecer. Aos poucos, muito devagarinho.
Mas voltando aos sonhos. Os bons já referi, mas muitos deles eram maus. Eram, exactamente, sobre a avó doente, sobre a morte da minha Jula. O meu grande medo. Porque a avó Jula era um “eu” em grande, e talvez achando que a perdia, eu lá muito no fundo achava que uma parte de mim também se perdia. E perdeu. Foi perdendo. Porque sempre me achei muito parecida com a minha avó. E, pese embora a minha muito baixa auto-estima, isso era uma coisa boa. Porque a minha avó era a pessoa mais boa-onda e boazinha que eu conhecia. Ou era como eu a via e vejo, e quero que assim continue. O mais assustador desses sonhos era quando eles, de algum modo, se tornavam verdade. Como um há uns anos atrás onde a minha avó ficava muito doente, ia para o hospital e eu tentava ir vê-la e nunca conseguia, e quando finalmente o fiz, ela tinha acabado de falecer. E eu com tanto para lhe dizer. Nesse dia, depois de acordar angustiada, a minha mãe envia-me uma mensagem a dizer que a avó tinha ido para o hospital. Mas ficou bem. Já eu, nunca mais me esqueci do sonho.
Anos depois outro sonho do mesmo género. Ao fim do dia, telefonema da mãe: “A avó foi para o hospital”. Ficou muitos dias no hospital nessa vez, e eu aí consegui fazer o que no sonho não consegui: disse-lhe como eu gostava dela e como ela tinha um peso tão grande na formação da pessoa que sou hoje, que quando pensava em bem-estar e paz pensava nela e no avô e no tic-tac deles. E agradeci-lhe. Baixinho, a fazer-lhe muitas festinhas na cara, enquanto ela batalhava para respirar, com a cabeça noutro mundo que não é este nosso.
No dia em que ela faleceu, eu, claro, tinha sonhado com ela e nesse sonho penalizava-me por não a ir visitar há já muito tempo, mas aguentei-me sem pensar muito no assunto, aliviada por saber que não tinha sido uma morte sofrida. Porque ela não merecia. No velório e funeral coloquei o meu melhor humor, e ia às escondidas à casa de banho chorar um bocadinho para aliviar. Como ainda faço.
Há cerca de mês e meio obriguei-me a passar em frente à casa dela. A casa onde sempre me imaginei a morar. Porque aquele era o meu paraíso, o meu escape, o meu canto. Fim-de-semana perfeito era ou a passear, ou em casa da AvóJula. Na adolescência, sempre que sentia que o mundo (leia-se pais ou irmã!) era tão injusto, pensava sempre que perfeição seria morar com os avós! Quando o nosso Xico morreu pensei seriamente em ficar a morar lá para fazer companhia à minha Jula, sentia-a tão perdida. Fiquei uns tempos e obriguei-a a trabalhar muito: mudar móveis, tirar alcatifa, arrumar roupeiros…até ela me pedir para ter calma! Mas a mim custava que a casa estivesse então tão diferente, não queria perder aquela minha paz, que se foi muito com a morte do nosso Xico. Agora, quando lá passei observei a casa diferente, o quintal diferente e outras vidas lá dentro, outro interior que nem consigo imaginar. E chorei, chorei uns 20 minutos parada frente ao quintal, até o cão que agora o habita começar a rosnar. E virei costas.
Já há muito tempo que queria escrever sobre a minha avó e avô, mesmo antes de Agosto, mas não conseguia. Porque sei que tenho tanto para dizer. Hoje, não sei bem como, lá vão saindo palavras (muitas até), mas parece que o que sinto mesmo não me sai dos dedos. Fica só a tentativa, até porque sabe bem tentar pôr por palavras algo que é um misto de dor e de felicidade. Dor porque nada dura para sempre. Felicidade porque tive duas pessoas lindas na minha vida, e delas herdei tanto.
Se alguém teve paciência e tempo para ler tanta e longa lamechice a pairar na blogosfera, as minhas desculpas. Mas precisava deste exercício.